Luiz Gama, o patrono da abolição da escravidão
Nascido em Salvador em 1830, ex-escravo baiano, jornalista e poeta libertou cerca de 500 escravizados.

Nascido em Salvador em 1830, filho de uma
africana livre e de um português, Luiz Gama foi vendido ainda criança
pelo pai, como pagamento de uma dívida de jogo, e enviado a São Paulo
como escravo. Foi alfabetizado apenas aos 17 anos, um ano antes de
conseguir judicialmente a própria liberdade.
Por ser negro, foi impedido de frequentar o curso da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a mais antiga instituição do gênero no país. Determinado, o baiano passou a estudar direito de forma autodidata e atuou na prática como advogado, libertando mais de 500 negros da escravidão. Em 2015, 133 anos após a sua morte, foi reconhecido pela OAB como advogado e, em 2018, foi declarado por lei como patrono da abolição da escravidão no Brasil, além de ter o nome inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.
O abolicionista, que também foi jornalista e poeta, é tema do estudo de Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp que pesquisa a vida e obra de Luiz Gama há cerca de 20 anos e publicou três livros sobre ele. O último, Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, foi lançado neste ano.
Em entrevista exclusiva à TV Brasil, a pesquisadora fala sobre o papel importante de Luiz Gama no movimento abolicionista, de sua atuação relevante na imprensa e também no campo literário.
Leia a entrevista a seguir:
TV Brasil - Neste livro,
que traz 61 artigos de Luiz Gama, 42 deles inéditos, quais são as lições
de resistência que o leitor vai encontrar?
Ligia Fonseca Ferreira - Essas lições de resistência
são, em primeiro lugar, a defesa dos escravizados, a defesa dos direitos
humanos, sobretudo o direito dos escravos que já existiam, já estavam
inclusive assegurados pelas nossas leis, mas que muitas vezes não eram
respeitados. Ele conseguiu desenterrar leis que ficaram como letra
morta, como a lei de 7 de novembro de 1831, que deveria garantir que os
africanos que desembarcassem no Brasil a partir daquela data deveriam
ser considerados livres e que os traficantes de escravos deveriam sofrer
penalidades. Então de 1831 até 1888, quando houve a abolição, são 57
anos. Mas o Luiz Gama vai fazer com que essas leis possam ser aplicadas
antes da abolição. Ele diz que a função dos juízes é de estudar e
aplicar as leis e ele vai bater insistentemente nessa tecla, e é a
partir disso portanto que ele alcança, como declara numa carta, a
liberdade de cerca de 500 escravos.
TV Brasil - Mesmo sem
formação acadêmica, Luiz Gama demonstrava muito conhecimento jurídico e
advogava de graça para libertar os escravizados?
Ligia Fonseca Ferreira - Ele traz à tona essa condição
muito singular de ser um homem de uma imensa cultura jurídica e de
aplicá-la em benefício dos escravizados. Ele tinha uma autorização
especial para advogar em primeira instância e fazia anúncios a serviço
das causas da liberdade, tudo sem retribuição alguma. Ele abraça a causa
abolicionista e também foi um dos primeiros brasileiros a abraçar a
causa republicana. Para Luiz Gama, a luta abolicionista também se
desdobrava na luta pelos ideais republicanos, no combate à monarquia,
então a gente não pode se esquecer desse papel muito importante que ele
vai ter nesse momento.
TV Brasil - Luiz Gama
advogava de graça e tinha como ganha-pão o trabalho de jornalista.
Inclusive fundou o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, chamado Diabo Coxo. De que forma as facetas de abolicionista e jornalista se uniam?
Ligia Fonseca Ferreira - O Luiz Gama é esse trabalhador
incansável do jornalismo que nós também precisamos conhecer. Além do
abolicionista, que se funde com esse homem que está olhando para o
Brasil e mostrando um retrato a partir de uma perspectiva diferente, que
a sua condição de homem negro lhe dava. No ano de 1871, quando Luiz
Gama é acusado de promover insurreições escravas, ele vem a público
através da imprensa, que era uma arma importante para ele, dizer que não
estava promovendo insurreições, mas que, quando a justiça falhasse em
garantir o direito dos escravos, ele fala que promoveria a resistência
como virtude cívica.
TV Brasil - E além de atuar
como abolicionista e jornalista, Luiz Gama também foi poeta e lançou o
primeiro livro apenas 12 anos depois de ser alfabetizado?
Ligia Fonseca Ferreira - Estamos falando aqui do Século
19, em que pouquíssimos negros estiveram ligados ao mundo das letras, à
produção literária, que é outro aspecto no qual ele se destaca. Ele
lança as Primeiras Trovas Burlescas em 1859. É um conjunto de
sátiras políticas, sociais e raciais, nas quais o Luiz Gama faz uma
grande descrição do funcionamento da sociedade imperial da época. Se a
gente ler a maneira como ele aponta o funcionamento da sociedade em
vários níveis, a gente tem a impressão de que o Luiz Gama está fazendo
um retrato da nossa sociedade de hoje. É isso que garante a sua extrema
atualidade. E ele também escreve poemas líricos. É o primeiro poeta
afro-brasileiro, porque ele era filho de uma africana, a ter louvado a
mulher negra, então ele já tem um papel bastante interessante dentro de
uma produção que mais tarde a gente vai poder chamar de literatura
negra, trazendo essa temática.
TV Brasil - Nesses 190 anos do nascimento de Luiz Gama, ainda falta reconhecimento para a obra dele?
Ligia Fonseca Ferreira - Ele deveria estar presente na
história da literatura, do período romântico; na história do Brasil,
especialmente das lutas abolicionistas e da campanha republicana; ele
deveria estar na história das ideias jurídicas, e ele deveria estar na
história da imprensa, pelo papel que desempenhou e que agora uma parte
está reunida no livro Lições de Resistência, em artigos que tratam sobre escravidão, liberdade, república e direitos humanos.